Livro: "Predador Sexual" - Parte 10

Velha é a Máquina! Eu sou o Amor.

Tantas e tantas coisas aconteceram na minha ausência. Estava na hora de voltar a participar mais ativamente desta estória. Sempre cumpri muito bem o papel de fofoqueira. Pois a minha fofoca é das grandes.
Neste período de oito meses, criei muitos sentimentos por Valkíria, Júnior, Valentim e Leo. E me interesso cada vez mais por suas histórias e experiências pessoais de vida. Um interesse literário, para ficar mais esclarecido. Minha máquina de escrever acumulou muito pó. Resolvi tirar a prova daquilo tudo que havia escrito. Surpreendentemente porque um velho amigo da infância decidiu ler e revisar minhas páginas. Agora quer editar para publicação!
Quando imaginaria que nesta altura da minha vida, meu primeiro romance seria publicado? Eu? Apenas mais uma intrometida, que acabou contando a estória de tudo aquilo que observava da própria sacada, no condomínio, ouvindo pelas paredes.
Toda esta narrativa acabou me deixando cheia de vida, retribuindo amor, mudando a minha própria imagem. Ninguém mais fala de mim pelos corredores, ou muda de assunto quando passo com minhas sacolas de compras. Passei a me ocupar com meus afazeres, minhas vontades e desejos. Nunca é tarde para mudar, certo?
Continuo acordando cedo, passando meu café e fazendo algo para comer. Depois disso vou até a feira, compro os melhores legumes, algumas frutas da época e tudo que meu dinheiro consegue comprar. Um aposentado neste país é tão miserável que chega a dar pena. E esse pouco que ganho da aposentadoria do meu falecido marido, oficial do exército, consegue manter minhas contas em dia.
Não sei se isto é tão relevante para o contexto. Mas, não posso mentir sobre alguns fatos ficcionais, tais como a minha reação quando soube que meu filho era gay, ou quando tive que de imediato ajudar Valkíria na morte do seu falecido pai. Não era uma mulher tão prestativa.
E me diga, que mãe quer ver o seu filho sofrer? Toda mãe quer apenas ver seu filho feliz. E com meu Carlinhos, não foi assim tão diferente. A primeira impressão que tive era que ele iria apanhar nas ruas, ser destratado, usar drogas, se meter com coisas que não deveria. E estava errada, completamente equivocada sobre tudo isso. Ele continuou sendo meu filho, com todas suas manias e seus jeitos, só que muito mais confiante e realizado. Com alegria nos olhos, emoldurando sua face de uma forma vibrante.
E, dentro daqueles dias que se passaram, parecia que a ordem das coisas estava novamente restabelecida. Valkíria recebeu uma linda carta de seu pai, pedindo perdão pelas coisas cometidas e esclarecendo o motivo dos seus problemas de convivência e suicídio. Ele havia organizado toda a vida dos filhos antes de partir, separando os bens de forma igualitária, emancipando Júnior. Valkíria decidiu seguir o conselho de seu pai (que se mostrou atento aos gostos dela, surpreendendo-a depois de morto) e começou a cursar Design. Valentim, que abandonou a academia, começou a cursar Administração, e com a fortuna que herdou dos pais (ambos morreram em um acidente com um bimotor, quando estavam viajando para Cuiabá) devolveu o dinheiro de Leonardo (dado por Madame Kassandra na época), e se colocou na vida, reformando uma linda casa para ir morar sozinho com Valkíria.
Meu filho Carlos e o Júnior estão namorando sério. Vivem sempre cheio de seus problemas, mas mesmo assim não se largam. Meu filho passou em Engenharia Mecânica, e quando não está com Júnior está sobre seus cálculos e pilhas de livros. Júnior decidiu fazer Cinema, e não é que tem talento para isso? Estava me mostrando a ideia de um documentário, sobre como o amor que é retratado no cinema, influência as inúmeras gerações de formas diferenciadas.
Leonardo comprou o apartamento de Valentim, com toda a decoração moderna e minimalista. Sempre que sobra tempo das suas aulas de arte, faz uma mega sessão de cinema para todos, com muita pipoca, bebida, comida japonesa e coisas do gênero. É também um jovem solteiro, apelidado por todos como o lobo solitário, ficando horas dos finais de semana pintando quadros e mais quadros, para a exposição da escola no período de férias. É um artista plástico invejável. Uma ótima terapia, segundo ele. Sempre sobe até meu apartamento e tomamos um cafezinho, conversando sobre as coisas do dia a dia.
- Com licença, Dona Lúcia! Estou entrando – disse Valkíria abrindo a porta da sala, e indo em minha direção na sacada.
- Vai entrando Valkíria, você já é de casa! Cadê Valentim?
- Está no Leo. Já sobe para lhe ver também. O que a senhora faz aqui, pegando sol? Esta hora o sol ainda é muito forte, Dona Lúcia!
- Estava batendo em umas teclas...
- Vou lhe comprar um computador de presente. Aí você abandona esta máquina de escrever velha! Escrevendo sobre o quê?
- Vou passar um cafezinho e daí conversamos sobre isso. Porque não queria publicar meu livro sem falar com todos vocês antes...
- Falar com nós todos? Como assim Dona Lúcia? Nós todos quem?
- Com você, com Valentim, com o Júnior e com o Leo... Mas vamos ali na cozinha que eu explico melhor! O que te traz aqui?
- Resolvi passar ver se a senhora precisava de alguma coisa ou se estava bem. Sabe que prezo muito a sua generosidade e sua amizade!
A máquina parecia não parar de escrever sozinha.
- Sim querida, tenho muito gosto das coisas boas que você está colhendo. Você sempre mereceu. Já se acostumou com a ideia de ter um jardim em casa, depois da reforma?
- É muito bom! Espaço é o que mais tem na casa. E eu adoro o contato com a natureza, ainda mais nesta cidade toda cinza e pavimentada. Será meu paraíso particular. E Valentim está adorando o resultado do nosso recanto... Nada mudou Dona Lúcia, ainda somos os mesmos!
- E Valentim, como vai? – perguntei lhe oferecendo uma fatia de bolo, enquanto a água para o café não fervia.
- Está bem. Continua fazendo meu almoço, como um verdadeiro dono de casa – abriu um sorriso de orelha a orelha – Cursando a faculdade mas tem as mesmas indecisões da vida, sabe? Está pensando em cursar uma especialização em comunicação e marketing...
- Estudar nunca é demais, né Valkíria?
- Não mesmo Dona Lúcia!
- A água ferveu. Vou ir passar um café para nós duas.
Deixei Valkíria no sofá. Com a reforma da minha cozinha conseguia deixar tudo integrado, ampliando minha casa e a deixando mais ventilada (ideia do Leo, que sempre foi muito bom com esse negócio de decoração).
- Chegou em tempo de pegar um café quentinho – disse para Valentim, que acabava de entrar no meu apartamento.
- Como a senhora está Dona Lúcia, bem?
- Estou muito bem.
- Posso pegar um pedaço do seu bolo?
- Claro, sinta-se a vontade.
- Sobre o que a senhora queria falar antes? Dona Lúcia vai publicar um livro Valentim...
- Que legal Dona Lúcia! É sobre o quê?
- É sobre vocês. E queria que soubessem disso, antes de eu assinar qualquer contrato para publicação. O assunto todo do livro são vocês...
- Nós? O que temos de especial para virarmos uma estória? – perguntou Valentim.
- O amor. Esse amor que anda em falta nos dias de hoje. Mas, não poderia fazer isso sem a versão de vocês dos fatos. Eu usei da minha licença poética, dada aos escritores por certo mérito, mas preciso que aprovem o conteúdo do livro. Não quero fazer nada sem o consentimento de todos. Leo já me cedeu autorização, leu a estória e ficou feliz. Introduziu algumas palavras, onde faltava alguma opinião mais pessoal...
- Não sei o que lhe dizer Dona Lúcia – Valkíria se animava no sofá – Nunca esperei virar enredo e personagem de um romance. Da minha parte quero ler este livro depois de impresso e autografado. Acho que não devo temer a forma que fui retratada pela senhora... Tem a minha autorização.
- Quanto a mim – disse Valentim – Gostaria de dar a minha opinião sobre mim mesmo. Se a senhora não se importar, é claro!
- Não me importo, lógico que não me importo. Eu sempre me intrometi muito na vida de todos, ouvindo pelas paredes para esparramar fofocas. Quero que esta estória represente o quanto vocês são bons e humanos. Quero falar sobre o amor, sobre a tristeza, o perdão e a felicidade...
- Se puder levar para ler. Lhe mando ainda nesta semana minhas observações sobre eu mesmo... O que é bem estranho...
- Júnior me mandará uma parte também. Eu só posso agradecer de todas as formas. Eu amo muito todos vocês. Eu amo muito vocês – não me contive e acabei me emocionando, todos eles sempre mexeram muito comigo.
- Nós também lhe amamos Dona Lúcia – disse Valkíria me abraçando entre lágrimas.
E me mandaram. Naquela mesma semana fiz todas as alterações necessárias e passei a ser a primeira escritora da família. Uma senhora de 60 anos que nunca desistiu de seus sonhos. Fazer fofoca não é crime. Crime mesmo é não se amar, é conceber julgamentos errôneos sobre a realidade que não lhe convém. Quem sabe não comece a escrever meu próximo livro agora? Mas no computador e não nesta máquina de escrever velha. Também sou velha para isso? Velha é a máquina! Eu sou o amor.
Mas não se assuste. A estória não vai acabar desta forma! De longe, esse nem se parece com o fim. Mas escrever não é fazer fofoca?

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