Livro: "Predador Sexual" - Parte 08

Capítulo VIII – Suicídio

(Valkíria)
- Você? – perguntei assustada, quando olhei Leo parado na porta.
- Por favor, me deixe ver ele.
- Você não está satisfeito? – perguntei lhe dando as costas.
- Você não sabe o que passei com ele. Você não pode me tirar este direito.
- Leo? – Valentim abriu e fechou os olhos.
- Está tudo bem com ele? – Perguntou Leo assustado.
- Sim, efeito da medicação. A enfermeira já me alertou sobre isso. Quem sou eu para não deixar você aqui?
- É a namorada dele.
- Não é por mim que ele chama. Não sou sua dona. Estamos brigados.
- Eu fiz mal para ele. Você não faz o mal que eu fiz. Eu que nem deveria ter vindo aqui. Me desculpa pela bebida daquele dia, e por isso tudo que está acontecendo.
- Não tenho que desculpar ninguém. Até por que foi ele que fez isso com ele mesmo.
- Eu fui procurar você, no seu prédio, e me disseram que estava aqui...
- Procurar? – disse olhando-o nos olhos.
- É...
- Procurar para quê?
- Para me desculpar. Não sou disso... Sabe... Dessas coisas que fiz.
- Já falei que não precisa se desculpar. Ninguém teve culpa de nada. Não podemos culpar ninguém por tudo isso que aconteceu. Ele não conseguia me contar, você só tem coisas mal resolvidas com ele, e eu gostava do jeito misterioso sobre os fatos. Acabou aqui. Então somos todos inocentes. Inocentes por não sabermos dominar nossos próprios sentimentos. O que me diz?
- Valkíria, eu te amo – Valentim resmungou enquanto se virava para o outro lado da cama. Eu o cobri respondendo:
- Dorme meu amor. Descansa. Está tudo bem – Então olhei e perguntei para Leo – Não quer tomar um café? Aí conversamos um pouco mais, se estiver afim...
- Claro, assim ele descansa melhor também.
- Não precisa ter medo de mim.
- Eu só tenho medo de mim mesmo e de mais ninguém, não se preocupe. A vida não foi tão boa comigo.
- E boa para quem ela foi, não é mesmo?
- É.
Era muito estranho ter Leonardo descendo as escadas comigo, ainda mais para conversar sobre Valentim. Ficamos quietos, não abrimos a boca, lado a lado até lá embaixo. Pedimos nossos pedidos e ficamos sem saber o que dizer até ele quebrar aquele silêncio.
- Vocês estão há muito tempo juntos?
- Uns três meses.
- Uhm... Bom esse café.
- Sim... Vocês ficaram juntos então? Digo... Por um tempo?
- Foram cinco anos.
- Nossa, bastante tempo!
- O tempo não conta muita coisa. Ele está melhor com você.
- Outros tempos. Nós mudamos.
- Sim. Mudamos.
- Ele tem tanta raiva de você exatamente pelo que? Se quiser falar é claro...
- Não, sem problemas... São coisas que já se acertamos. Ele é assim, apesar de tudo que fiz não guarda mágoas...
- E aquilo lá na boate?
- Acho que pensou que eu estava atrapalhando a vida de vocês... E isso é uma coisa que nunca cogitei fazer... Mesmo que...
- Mesmo que?
- Deixa para lá... Sobre o que queria saber mesmo?
- Da raiva...
- Ah sim, desculpa. Bom... Eu fiz o que alguém que ama nunca deve fazer. Desconfiei, julguei e traí meu próprio caráter roubando o que ele tinha e fugindo com uma vagabunda aleatória, que apenas me usou e tirou tudo de mim igualmente... Aquela coisa de lei do retorno...
- Ahm... Nossa. E posso saber por que tudo isso?
- Eu estava cego pelas coisas que ela me dizia. E as coisas complicaram quando ele começou a fazer shows particulares...
- Shows particulares?
- Você não sabe?
- Não. Saber o que?
- Ele era stripper. Pensei que...
- Não, pode continuar...
- Então... Nesses shows usava o codinome de Predador Sexual. Não faz mais isso. E nunca fez porque queria, pelo menos não no começo. Ele precisava disso para sobreviver. Perdeu a avó, os pais nem queriam saber dele, porque achavam ele estranho demais para ser da família, que sempre foi muito tradicional... Essas coisas, não sei se me entende...
- Sim. Isso explica bastante os fatos. Preciso conversar muito com ele...
- Ele já foi acompanhante de luxo. Mas abandonou tudo isso e ficou na academia que trabalha até hoje...
- Trabalhava...
- Bom, não sabia, mas quando conseguiu se estabilizar mudou totalmente de vida, abandonou um mundo que era bem superior na questão financeira, para ganhar a tranquilidade dos dias de hoje.
- Pensava que iria me assustar mais... Isso não chega a me desesperar, nem diminuir o que sinto. Não é estranho?
- Não. Você ama ele de verdade.
- A família dele nunca se interessou em saber como ele estava?
- Que eu saiba não. Quando nós vivemos juntos, em nenhum momento ligaram ou deram algum sinal de vida. Pelo contrário, criavam barreiras para ele nem descobrir onde eles moravam ou o que eles faziam. Mas pelo que fiquei sabendo, por alguns amigos em comum que ainda temos, é que ele foi uma vez visitar os pais, no Mato Grosso, estavam lidando com algumas cabeças de boi em um fim de mundo qualquer. Ninguém sabe o que aconteceu, mas foi aí que abandonou tudo e começou a viver de uma forma mais simples, com o emprego da academia, indo menos em festas e coisas assim...
- Nem mesmo a mãe dele apoiou o próprio filho?
- Não. Ele sempre me disse que sua mãe era uma cobra. Que fugiu cedo de casa, e por ser bonita conseguiu fisgar o seu pai, que já tinha uma certa influência e dinheiro onde moravam.
- Moravam aonde?
- Em uma pequena cidade de Minas Gerais, que agora não vou me recordar o nome. Cidade pequena, cabeça fechada.
- Compreendo. Aí por isso veio morar com a avó?
- É, porque os pais não aceitaram a humilhação que passaram quando pegaram ele e um garoto se beijando em um evento da cidade. Ficou com a avó por três anos até começarmos a ter um relacionamento e irmos morar juntos.
- Mas ele só se relacionou com homens?
- Não. Já teve alguns casos sérios com mulheres. E isso que é bonito nele, além de tudo que ele representa, essa entrega total para seus sentimentos. Quando ama, independente de gênero ou como queira chamar, ele ama por completo, se entrega por inteiro. Dizia para ele, que a missão dele por aqui era distribuir o amor. Ele ria e ficava me olhando com aquele olhar que ás vezes transpassava até a alma, tinha uma coisa envolta dele que... Me desculpa... Vocês...
- Não, tudo bem. É bonito ver alguém falar assim dele. Você ainda ama ele não é mesmo? São bem mais sentimentos não resolvidos do que eu pensava.
- Eu... Não posso negar. Eu gosto... Amo.
- Eu sabia. Quando vi seus olhos aquele dia, me derramando bebida, eu já desconfiei disso.
- Espero que não fique braba comigo.
- Por que ficaria?
- Não sei. Por amar o homem que você ama.
- Que besteira. Se você odiasse ele aí sim puxaria uma briga feia comigo! Mas amar... É bonito amar. Tendo respeito por que não amar? E estava com ciúme, não nego. Mas você não é uma pessoa ruim...
- Eu...
Leo chorou muito na mesa. Quem diria que eu o abraçaria e ficaria lá, sabendo mais sobre quem era aquele homem de cabelos loiros que amava Valentim assim como eu. Não era de todo um homem mal. Até cheguei a cogitar que se não fossem as circunstâncias adversas, que ambos passaram, estariam juntos até hoje. Aquilo tudo era sincero.
Leo me contou um pouco mais sobre sua história. E nós não nos importamos com as pessoas que estavam na espreita ao nosso redor. Estávamos envolvidos por uma atmosfera negra de sentimentos baixos. Me abri também com ele, éramos parecidos em nossas convicções, com uma única diferença: ele havia passado por muito mais coisas do que eu imaginava. De resto? Éramos iguais. Duas pernas, dois braços e um imenso coração para amar.
- Não fazia ideia de tudo isso Leonardo – comentei, depois de algumas horas de conversa, quando percebi que o Café já estava vazio, apenas com nós dois e nossas histórias e xícaras vazias.
- Estou agora de favor, na casa de um amigo. Consegui um emprego em uma escola de artes. Estou ensinando pintura. Não é grande coisa o salário, mas consigo rachar as contas e não dormir na rua. Estou mais feliz agora.
- Eu queria poder lhe ajudar mais. Eu não consigo pensar em você passando pelo que passou. Eu sei que cometeu coisas erradas, mas todos nós erramos. E se você sentar conversar com Valentim, na minha presença tenho certeza que ele vai lhe ouvir. Isso que você fez redime qualquer coisa que tenha feito antes. Você realmente ama ele. Eu não sei mais nem o que pensar, se não estou atrapalhando alguma coisa, sou nova nisto tudo.
- Você não está atrapalhando nada. Vocês se amam, isso é explícito quando fala dele. Seus olhos brilham. Eu que... Me desculpa. Não deveria ter falado tudo isso com você. Não quero e nunca vou querer, acabar o amor que vocês sentem um pelo outro. Você faz bem para ele. E isso é o que mais importa para mim.
- Obrigado por dividir isso comigo. Perdi até a noção do tempo conversando com você.
- Melhor pagar a conta e irmos, você deve estar cansada e querendo ficar mais com ele.
- Você... Se quiser, sabe... Pode vir ver ele mais vezes.
- Obrigado mesmo por isso. Adorei essa hora do café no meu dia. Opa, sou um desastre...
- Deixa que eu pego...
Foi aí que me dei conta daquilo. Não estava gostando de saber mais sobre meu Valentim, estava gostando da presença de Leo. E enquanto pegávamos juntos meu celular, que ele sem querer havia derrubado no chão, o simples toque de nossas mãos alertava para uma coisa estranha aos dias diferentes em que eu vivia. Quase nos beijamos se não fosse por alguns simples detalhes: ele era gay e uma coisa grave acabava de acontecer na minha vida.
[...]
(Júnior)
Sinceramente preciso falar sobre isso? Acho que sim. Não é tão bom assim narrar uma coisa dessas, mas vamos lá. Ainda é tudo muito recente para minha cabeça. Eu, um jovem homossexual, tendo espaço para relatar a minha história. Quando se pensou uma coisa deste tipo? Já devem saber um pouco de mim, sou Júnior. E foi assim que essa coisa grave aconteceu:
Estava no meu quarto como de praxe, não ficava na sala ou na cozinha quando meu pai estava em casa. Éramos dois estranhos tendo que dividir o mesmo espaço vital. A relação de meu pai comigo e com Valkíria vinha sendo conturbada de longe, um pouco antes ainda de minha mãe morrer.
Naquele dia meu pai não chegou alterado. Estava de cabeça baixa e foi reto para o quarto. A casa estava silenciosa e eu coloquei novamente meus fones de ouvido e continuei ouvindo meu álbum favorito. Sabe quando você sente que alguma coisa está errada? Pois bem, meu pai estava fora de seu eixo. Quando que chegaria naquele dia da semana cedo e sóbrio?
Ele começou a beber logo após a primeira crise da minha mãe. Eram crises fortes, daquelas em que as pessoas se contorcem de dores, e a gente não pode mais fazer nada. A gente só pode se ajoelhar e pedir a Deus que conforte, que proteja, e que restabeleça a naturalidade dos fatos.
Não via meu pai pela manhã, exceto quando me levava para a aula. Mesmo assim, trocávamos poucas palavras, somente as necessárias. Haviam períodos no ano em que ficávamos quase um mês sem se falar. Para mim já era básico, eu vivia a rotina de um órfão de pai e mãe. E acho que isso me confortou um pouco de tudo o que aconteceu.
Apesar de todos os pesares, ele era meu pai. E eu tinha respeito pelo homem que ele representava na minha existência. Mesmo quando ele agia como um animal, eu o respeitava. Não podia obrigar que ele me aceitasse da maneira que eu sempre fui. Eu deveria me aceitar e mais ninguém, concordo que aprendi tarde isso. E também não o aceitava em sua totalidade, nunca fui um hipócrita.
Mal sabia dos negócios dele. Nem sabia mais como que ele pagava as nossas contas. Apenas via que estavam pagas no fim do mês, mensalidades em dia, fatura do cartão quitada. Água, luz, telefone e celular nunca foram cortados, sempre estiveram a minha disposição. Por isso acreditava que as coisas não eram tão erradas assim. Meu pai que não soube aprender com a sua própria vida, desistindo de seus sonhos bem cedo.
Eu mesmo era um sonho. Lembro que minha mãe sempre me falava sobre isso. Era o filho que ele tanto queria, o filho que Valkíria não era. Entende agora por que de meu nome?
Decepção atrás de decepção. Não foram tão fáceis as coisas para ele. Só consegui naquele dia, ajudar levemente ele carregar a cruz que tinha sobre os ombros. Não estava tão interessado assim em alguém como ele. Mas pessoas como ele, merecem serem compreendidas antes de serem julgadas. Nós já não sofremos com julgamentos todos os dias?
Lembro perfeitamente que ele abriu a porta de meu quarto, eu assustado não sabia o que fazer. Tirei meus fones e pedi se estava tudo bem.
- Por que você é gay?
- Por que eu não seria pai?
Ele começou a chorar e eu não estava entendendo mais nada. Aquele homem que tinha prazer em me humilhar, estava ali humilhado no chão do meu quarto, expondo as suas fraquezas. Tive medo do pior, confesso.
- Onde está sua irmã?
- Está no hospital, cuidando do Valentim.
- E quem é Valentim?
- O namorado dela.
- Meu Deus...
- O senhor está bem?
- Quando foi que parei de reparar que vocês existiam?
- Quando começou a fazer perguntas do tipo: você é gay.
- Eu... Seria muito para você me escutar um pouco?
- Não. Você não tem a obrigação de pagar as minhas contas, mas mesmo assim paga. Sacrifício por sacrifício.
- Seria um sacrifício para você?
- Não vou mentir, seria.
- Eu sei que eu mereço. As coisas não saíram como eu tinha planejado.
- A vida não precisa de um planejamento pai.
- Quando me casei com sua mãe pensei que seria eternamente feliz. Ela era bonita, era perfeita demais para alguém como eu. Eu mal tinha saído da faculdade e estava entrando em um trabalho novo. Não tinha a vida ganha, mas estava encaminhada. Sua mãe já esperava a Valkíria...
- Mamãe já me contou isso...
- Já?
- Sim.
- Eu juro que eu tentei. Eu fiz de tudo para tentar. As coisas simplesmente não aconteciam. Foi uma sucessão de erros. Aí veio você... E cometi mais erros.
- Você não cometeu erro algum. Tudo que vivi me deixou mais forte. Sério que vou ter que ouvir isso?
- Preciso que você vá pagar uma conta para mim. Seria pedir muito?
- Não. Mas... Aqui tem muito dinheiro! – Falei isso porque reparei que ele havia me dado o dobro de dinheiro do valor da conta.
- Perdão meu filho! Só preciso saber que você me perdoa.
- Eu não guardo mágoa de você. Quem viveu a vida com sentimentos ruins e amargos não fui eu.
- Eu sei. Eu queria falar tantas coisas bonitas para você...
- Não precisa. Isso que você fez agora... Eu...
- Poderia te abraçar?
- Por que isso agora pai?
- Porque eu errei com você... Não quero mais cometer nenhum erro.
- Não precisa pedir perdão. Eu nem sei o que falar...
Abracei meu pai. Após tanto tempo abracei ele novamente. Não pressenti o perigo que este gesto envolvia. Porque as coisas estavam fora de ordem.
Eu fui pagar a conta, mas depois que voltei não conseguia mais entrar em casa, a porta estava trancada e alguma coisa a emperrava. Pensei que toda aquela cena seria um pretexto para me jogar para fora de casa. Não sabia o que fazer e entrei em desespero, até que Dona Lúcia me acolheu para dentro de seu apartamento e me esclareceu os fatos.
- Vou passar um café para você se acalmar. Seu pai estava quebrando tudo lá dentro. Parou agora pouco, agorinha mesmo antes de você chegar.
- O que eu vou fazer agora da minha vida Dona Lúcia?
- Como assim, o que fazer?
- Ele me expulsou de casa, eu tenho certeza disso. Olhe aqui, me deu até dinheiro para me virar...
- Claro que não. Ele nem é louco. Você ainda é menor de idade, e ele como advogado sabe das coisas.
- E nem para a Valkíria eu consigo ligar. Meu celular ficou lá, dentro do meu quarto. Justo hoje deixei ele em casa. Nunca saio sem ele...
- Carlos, vem cá meu filho. Quer que eu peça emprestado o dele para você ligar?
- Seria de bom grado. Por que a senhora me ajuda tanto? Não gosta de gays e mesmo assim me ajuda?
- Eu gosto de você Júnior. Você não é afeminado como alguns por aí. Não vive no cio. E presto atenção no que você passa na sua casa, você bem sabe. Sou fofoqueira mesmo, assumida.
- Obrigado Dona Lúcia.
- O que mãe... Mãe!... Você não disse que tinha visita aqui na sala – disse Carlos, vermelho de vergonha.
- Visita o que menino? Júnior já é de casa. Vai atender o interfone. Vai ver o que Seu José está querendo...
Carlos atendeu e já passou para a sua mãe.
- Quer falar com a senhora mãe, parece que é coisa séria.
- Um minutinho Júnior, fique a vontade aí...
Se tinha algo que Dona Lúcia não conseguia esconder, era coisa grave. Era uma senhora cheia de aflições. Se via de longe, quando ia para a feira de manhã, que alguma coisa havia acontecido, pela expressão de seu rosto. E dava sempre certo: acidentes, incêndios, ataques do coração, o país sofrendo um golpe, senado discutindo a anistia ao caixa dois. Tudo se via no rosto de Dona Lúcia.
- Vou descer lá embaixo na portaria e já volto.
- É coisa grave Dona Lúcia, deixa que desço com a senhora...
- Não, pelo amor de Deus não. Fica aqui com meu Carlos, que eu já resolvo as coisas e subo de novo. Nada de grave, nada de grave...
- Se a senhora diz... Mesmo não acreditando, eu fico. Estou sem cabeça para qualquer coisa. Vou tentar ligar para a Valkíria. Meu pai passou dos limites.
- E como passou Júnior. Meu Deus. Já volto.
Ela saiu apressada e eu fiquei esperando Carlos falar alguma coisa. Apenas me olhava e aquilo me deixava estupidamente irritado.
- Você me empresta o celular?
- Sim. Eu não tinha ido buscar. Vou buscar agora.
- Aham. Agradecido.
- Eu que agradeço. Quer dizer... Sem problemas.
Aquilo era bem engraçado. O Carlos, garoto exemplar, aquele de quem Dona Lúcia tanto se gabava, estava flertando comigo. E não era apenas uma impressão. Era de verdade tudo aquilo, bastava olhar para os olhos dele. E eu sempre fui muito deturpado por olhos. Os olhos dele eram duas pérolas recém descobertas. Brilhavam muito quando olhavam para mim. Eu fui direto porque nunca gostei de andar em círculos, e quando ele voltou eu soltei um:
- Você é gay?
- Eu o que?
- Só para saber.
- Isso não é coisa que se diga... Se minha mãe chega agora...
- Você é sim.
- E se for?
- Daí não é problema meu! Você é bem bonitinho viu... Continue assim!
- Você também não é de se jogar fora...
- Eu o que? Nossa, que horror garoto.
- Eu peço desculpas, não sei me expressar muito bem.
- É eu percebi isso!
- Quer mais café?
- Não obrigado. Só queria tomar um banho e ficar quieto nas minhas cobertas.
- Deve ser difícil para você né?
- Difícil o que?
- Conviver no ambiente em que você vive.
- Que ambiente? É louco?
- Ah, no ambiente...
- Você não quer sair fazer alguma coisa, algum dia desses? – mudei de conversa.
- Sim... Quer dizer, eu quero.
- Você é meio destrambelhado, mas é engraçado. Só não desenvolve bem as palavras. Nada que uma ajudinha não resolva.
Ele nem me respondeu, ficou parado sorrindo, e aquilo me irritava muito. Como um garoto tão bonito poderia ser assim tão sem jeito com as pessoas? Bom, Dona Lúcia já era um fator a se colocar em discussão. Viúva cedo, super protetora, fofoqueira e religiosa ao extremo.
- Só quero que as coisas se estabilizem para mim! – pensei em voz alta.
- Desde que lhe conheço você sempre quis isso.
- Sério? Me conhece há muito tempo?
- Sim. Desde pequeno.
- E por que não lembro de você? Lembro só de agora, e falar mesmo só hoje, se não estou enganado...
- É que minha mãe não deixava eu descer brincar. E quando fiquei mais velho ela não me deixava sair com você. Te conheço só de vista. Você é muito independente para as coisas.
- Você acha?
- Sim.
- Obrigado. Aprendi a me virar cedo. Você também deveria aprender, viu. Essa coisa de mãe deixar, é útil quando a gente não tem juízo, mas você me parece alguém bem ajuizado.
- Nem tão ajuizado. Para obedecer minha mãe eu tenho que ser um pouco louco.
- Não, isso é respeito. E você faz bem. Eu que coloco essas ideias horríveis na sua cabeça. Sua mãe vai se arrepender de ter deixado você aqui comigo!
- E como.
- E como por quê? Está dizendo que sou uma péssima pessoa e influência?
- Não... É que... Eu...
Dona Lúcia voltou. Pela rosto se observava que ela havia chorado. Só que desta vez estava acompanhada de algumas pessoas do prédio. Eu acho que estava compreendendo melhor as coisas, juntando os sinais.
- O que foi que aconteceu? Foi com meu pai não foi?
- É melhor você se sentar Júnior.
- Eu não quero me sentar Dona Lúcia.
- É com seu pai meu filho. Nem sei por onde começar.
- Pelo começo já seria bom...
- Seu pai morreu...
- Ele o que? Não é possível. Ele... Cadê ele? Eu quero entrar ali em casa... Cadê meu pai? – tentei sair do apartamento de Dona Lúcia, mas fui impedido pelas pessoas ao meu redor.
- Se acalma por favor. Ele não está ali dentro – respondeu Dona Lúcia – Virgínia pega uma água com açúcar para mim, vou ir fazer um chá calmante para você...
- Como assim... Ele... Não quero chá nenhum... – respondi sem entender nada.
- Ele se jogou da sacada, meu filho... – disse Dona Lúcia, enchendo seus olhos de lágrimas.
- Ele se matou? – comecei a chorar, porque não tinha mais nenhuma ação.
- Sim. Ele se matou.
Depois disso não me lembro de muita coisa. Estava em estado de choque. Demorei alguns minutos para voltar a ter consciência do que estava fazendo. Sei que a polícia arrombou a porta da minha casa, constatou que não haveria indícios de que outra pessoa estivesse ali dentro ou luta corporal. Era um suicídio. E eu era o filho da vítima e um prato cheio para os jornais locais.
- Ligaram para a Valkíria? – foi a primeira coisa que pedi após voltar a raciocinar com uma xícara de chá de camomila nas mãos.
- Não, ainda não. Achamos que se você ligasse seria melhor – respondeu Dona Lúcia, ainda muito comovida com o ocorrido.
- Sim. Vou pegar meu telefone.
Fui para o apartamento que estava todo revirado. Quando consegui discar só pensava naquele abraço e na forma violenta que meu pai se despediu da vida. Pisava em nuvens, não conseguia guardar rancor daquele homem. Ele era e sempre seria o meu pai, independente das circunstâncias da sua vida. Valkíria demorou um pouco para atender, e não consegui amenizar a situação, fui direto e claro, como sempre. Aquele dia terminou mais cedo do que eu esperava, e não apenas para mim.
[...]
(Valkíria)
- Obrigado mesmo por isso. Adorei essa hora do café no meu dia. Opa, sou um desastre...
- Deixa que eu pego... Meu celular está tocando! Meu irmão. Vou atender.
- Sim... – respondeu Leo.
- Alô.
- Papai se jogou da sacada. Está morto – disse Júnior do outro lado da linha.
- Como assim está morto?
- Está tudo bem? – perguntou Leo.
- Meu pai acaba de cometer suicídio.
Larguei tudo sobre a mesa e sai em direção ao meu carro. Leo pegou minhas coisas e conseguiu me encontrar no estacionamento com tempo. Insistiu em me levar, porque eu não estava em condição de dirigir. Durante o trajeto consegui me acalmar, precisava ajudar meu irmão em casa.

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