Livro: "Predador Sexual" - Parte 04

Capítulo IV – A Aberração é um Romeu?

“Ela está atrasada, será que ela ainda vem? Por que este nervosismo hoje?”
Ele andava de um lado para o outro, como o garoto de quinze anos que já tinha sido um dia. Finalmente bateram em sua porta, e ele rapidamente abriu com um sorriso hollywoodiano, se surpreendendo com Valkíria. Ela estava encantadora em um vestido preto, com o cabelo solto e um olhar turvado como águas profundas ou pedras turmalinas verdes. Valentim se aproximou de seus lábios e roubou um beijo, percebendo que ela não estava com a alegria habitual.
- Você está linda.
- E você também está muitíssimo lindo, eu te amo meu amor.
- Eu também te amo.
- Bom tenho que fazer umas ligações, posso ir até a sua varanda? Prometo que não vou me jogar! – Disse Júnior olhando para o casal.
- Oi Júnior, desculpa, não havia lhe visto! Sim pode ir, é por ali, bom você sabe... – Júnior deixou os dois sozinhos na sala.
- Tudo bem? Como foi o seu dia? Algo diferente? – perguntou Valkíria.
- Tudo melhor agora. Como sempre uma chatice. E com você, tudo bem?
- Sim.
O ambiente se encheu com a presença dos dois, que mutuamente se olhavam tentando achar no rosto um do outro aquele traço ainda não descoberto, ou o mistério pelo qual estavam embarcando naquilo há algum tempo. As mãos suadas de Valentim revelavam que estava nervoso.
“Por que o olhar dela está tão longe? Será que fiz algo que não deveria ou será que exagerei demais em alguma coisa?” – Pensou Valentim.
- Tudo bem com você? Está com o olhar longe, distante daquele olhar agressivo e marcante que você sempre tem.
- Estou? Nem percebi. Desculpe-me... Imprevistos...
- Posso lhe ajudar com alguma coisa?
- Coisas com meu pai... Mas vamos esquecer isso por hoje? Quero saber mais coisas sobre você... Meus problemas eu conto outra hora, eu prometo.
Ela não poderia estar bem, nunca havia deixado de falar sobre alguma coisa antes. Valentim não queria sufocar Valkíria, então relevou e não tocou mais no assunto. Uma hora ou outra ela iria falar sobre aquilo.
- Se isso colocar um brilho nos seus olhos e um sorriso nessa sua boca. Como assim mais sobre mim?
- Você é tão evasivo, sei lá. Não tem problema não é? Convidei meu irmão para ir junto.
- Não. Gosto muito do seu irmão.
- Quase empurrei minha vizinha hoje da escada – Valkíria sorriu, mudando o assunto.
- Hahahahahahahahaha. Sua psicopata.
- Infelizmente ainda não sou. Se fosse não sobrariam pessoas na face da Terra. Mas, convenhamos, o velha mentirosa e linguaruda, né?...
- Sim... Seria um alívio e dos grandes. Me chame quando for matar? Podemos cortar ela em pedaços, começando pela língua...
- Nossa. Assim você é que me assusta...
- Desculpa interromper os planos de rituais sexuais satânicos de vocês pecadores, mas aonde nós vamos mesmo? Tenho que orientar alguém para o lugar que deve ir... –  disse Júnior, voltando com o celular na mão e dando risada do que conversam na sala.
- Isso é com o Valentim, foi ideia dele, eu também não conheço aquele lugar...
- Não sei se conhece a Sensation House? Um lugar bacana para beber, conversar, dançar, jogar sinuca e ouvir uma música.
- Eu sei onde fica... Mas não é um bar alternativo?... Bom, obrigado e estou descendo... E vamos com você não é Valentim, porque a besta da minha irmã esqueceu a chave do carro em casa...
- Agora eu sou sua irmã e não Valkíria?
- Sim. Quando é besta, sim. Aí é minha irmã.
- Você me paga Valmor...
- Valmor... Vocês ainda com isto? – Pediu Valentim.
- Meu nome é Júnior. Eu escondo o Valmor das pessoas para quê?
- Para mim poder desmascará-lo... – disse Valkíria, entrando na brincadeira.
- Eu querendo fazer um drama, treinando minhas técnicas cênicas, vai que Wolf me acha... Não quero morrer sem brilhar no Projac. Aceito até a Broadway... Sou modesto...
Saíram do apartamento e por fim me deixaram aqui sozinha! Escrevendo mais um capítulo. Quanta consideração, eihm? Acho que essa narrativa merece um solavanco, eu sou um pouco vingativa por pegarem pesado com algumas palavras! Sou cheia disso, meio amargurada, vamos logo para aquele lugar, pois é lá que as coisas acontecem nesta estória...
A materialização do mundo em cores. Isso pode descrever aquele ambiente convidativo, com a percepção do que o mundo é sobre o aspecto da bebida, do sorriso e da interação social juvenil. Perceptivo e marcante, eu diria. Mas o que Valkíria diria?
- Adorei este lugar. E parabéns Valentim. Segundo lugar que não esperava que você me levasse. Você é sempre assim? Cheio de suas surpresas?
- Só quando a pessoa vale a pena.
- Gente eu ainda estou aqui – disse Júnior, interrompendo o beijo do casal.
Ambos riram por descontração, enquanto esperavam na fila para entrar no bar. Ele continuou a deixa dada, e intrigado pelo que tinha escutado, perguntou objetivamente:
- Não entendi o segundo lugar? Fizeram um sexo selvagem em algum lugar público?
- Nossa! Direto o seu irmão...
- Sempre. Acostume-se Valentim. Pois bem, não tem nada a haver com sexo, seu explícito. Ele me levou ao restaurante aonde íamos com a mamãe comer comida italiana, por acaso também frequentava, e frequenta, e só isso...
- Nossa! Esse mundo é pequeno mesmo, viu... Acho que a conspiração maquiavélica da ordem oculta e Illuminati existe e está trabalhando!
- O que? Não lhe entendi...
- Não é para se degustar com a compreensão, é para deixar dentro do incompreendido, bobinha! Eu sou isso, e você bem sabe disso. Em outras palavras Valkíria, comece a acreditar em destino, em horóscopo e em magia negra, porque você deu muita sorte. Gosto bastante de você Valentim. E olhe, acho que vocês têm futuro, e nunca falho nessas minhas percepções holísticas... Um dia viro bruxo!
- Já descobri de onde você fala tanto! Deve ser de família... – disse Valentim.
A risada contagiou os três, e os grupos que estavam próximos, e as pessoas que estavam naquele lugar. Por um segundo, quando os olhos de Valentim e Valkíria se encontraram, a felicidade contagiava a cidade, o país e por que não o mundo? E ambos partiram e mergulharam fundo neste mar negro de emoções, neste sentimento que os preenchia como os oceanos preenchem as fossas submarinas.
Então vem o mal... E ele leva tudo que é tão bom... Não é só minha vingança, é uma realidade que precisa ser escrita.
- Por favor, eu quero uma dose de Martini...
- Eu quero uma garrafa de vodca... – disse Valkíria desligando o celular e o colocando na bolsa.
- Parabéns Valkíria. Agora você que me surpreendeu...
- Posso lhe surpreender ainda muito mais. E você?
- Como?
- Desculpa... Queria um clima mais sensual para você começar a falar mais sobre sua vida, já que sobre mim sabe quase tudo...
Entre um sorriso e outro ele pediu para ela recomeçar do jeito sensual, que realmente o deixava excitado.
- Então, Valentim, Personal Trainer, que morou com a avó, que ainda tem os pais vivos, que é lindo, bem educado, romântico, evasivo e sabe fazer uma comida divina, o que mais devo saber sobre você, além daquilo que já observo todos os dias. Qual é a sua dor interna?
- O que você quer saber exatamente sobre isso?
- Aquele negócio de aberração, seria um bom começo. Sua família, não sei. Tudo isto é sério?
- Sim.
Pela primeira vez ele não foi evasivo sobre o assunto, então ela continuou.
- Mas por que aberração?
- Como vou começar a história para que você entenda?
- Pode ser por onde você sempre para...
- E em que parte exatamente eu paro?
- Que foi criado pela sua avó...
- Bom. Posso? – Ele apontou para a garrafa, após virar em um só gole sua dose de Martini.
- Faça as honras de nossa amiga vodca!
- A primeira coisa que você tem que saber é que não minto quando digo que te amo. Pelo contrário, eu realmente preenchi alguma coisa que me faltava.
- Disso eu não duvido, sinto isso também. Você me faz bem, é leve. É bom estar com você. Eu me esqueço do tempo...
- Bem... Eu sempre fui estranho...
E o mal acontece.
- Ei... Não olha por onde anda?... Que mal educado... Por favor, olha só... Me molhou toda. Desculpa novamente a interrupção, mas vou ter que ir ao banheiro me secar... – disse Valkíria, apontando para um homem loiro, que acabava de esbarrar e derrubar seu copo cheio sobre ela.
- Sem problemas. Quer que eu vá... – levantando e indo em direção ao banheiro, Valkíria fechou seu rosto e respondeu de longe:
- Não, fica aqui que eu já volto...
- Ok.
“Acho que não vi direito. Essa bebida deve estar começando a me fazer efeito” – Pensou Valentim.
- Cadê a minha irmã? – perguntou Júnior, se aproximando de onde Valentim estava.
- Foi no banheiro, derrubaram bebida nela.
- Nossa. Deve ter ficado possuída.
- Sim, ficou muito irritada!
- E vocês viram quem foi?
- Um homem loiro de cabelo comprido.
Aquele era o Diabo. Um jovem loiro e destemido, com seus cabelos compridos até a altura dos ombros. Usava uma jaqueta de couro sintético, uma camiseta rasgada de banda com uma calça jeans apertada. Seus olhos azuis pareciam duas piscinas cheias de água do mar do Caribe. Seus passos eram firmes e diretos. Estava na saída do banheiro, esperando por Valkíria, talvez para desculpar-se do inconveniente com a bebida.
- Era aquele ali? Da porta do banheiro? – Disse Júnior, apontando para a direção do homem que esperava Valkíria.
“Não pode ser. O que ele vai fazer? Estragar minha vida novamente?” – Pensou Valentim.
- Sim. Vou ir lá ver qual é a dele...
- Não, espera... Vou com você.
Quando deu por si, Valentim já tinha agarrado na jaqueta do homem, pegando-o desprevenido e sem reação.
- O que você quer? Acabar com minha vida?
- Nossa! Calma aí... Só quero me desculpar pela bebida Valentim – disse o homem.
- Vocês se conhecem certo? – perguntou Júnior.
- Preferiria nunca mais te ver seu desgraçado. O que você quer com ela? Acha que não sei como você é, sua desgraça?
- Você é mesmo tudo aquilo que sua avó dizia. Um mal agradecido. Eu fiz muito pela sua vida. Você nunca conseguiu reconhecer isso... – o homem olhou para Valkíria que estava saindo do banheiro.
- O que está acontecendo? – Pediu Valkíria, assustada com a cena – Não foi você que me derrubou bebida?
- Foi sim este miserável! – responde Valentim.
- Calma Valentim, era para eu estar nervosa... Eu que estou toda ensopada... Mas não estou irritada, não é para tanto...
- Ele fez de propósito...
- E se fiz? Qual é o problema? – ele respondeu tirando as mãos de Valentim de sua jaqueta, tentando sair daquele lugar sem ser notado.
- O que? – interrogou Valkíria.
- Eles já se conhecem – argumentou Júnior, percebendo que sobrava na situação toda.
- Como assim? Você fez isso por que quis? O que você tem na sua cabeça? Você é louco? – Valkíria indignava-se com a tranquilidade da resposta.
- Ai, volto depois... Ninguém me ouve mesmo... Fui – disse Júnior.
- Pergunte para o seu namorado, ou o que ele for seu. Ele vai lhe dizer os motivos – virou de costas e tentou sair, até ser agarrado pelo braço por Valkíria.
- Não! Você não vai sair daqui assim. Quero saber o porquê você fez isso. Você é louco? É estúpido? É o que cara?
- Sou Leonardo, sou gay. E ex-namorado do Valentim.
- Como? Ele não é... O negócio de aberração, nossa como não fui entender?... Você disse que não era gay Valentim... Por que mentir para mim? Não precisava ter feito isso... Não por tanto tempo... Desculpa, eu não quero mais ficar aqui, eu vou embora... Desculpa estragar o clima do... Casal...
Valkíria saiu chorando em direção à porta, sumindo no meio da multidão, enquanto Valentim tentava ir atrás dela. Então ele voltou até Leonardo e o chamou:
- Precisava há muito tempo fazer isso...
Valentim golpeou o rosto de Leonardo com uma garrafa, fazendo-o cair no chão. Enquanto várias pessoas tentavam separar os dois, os seguranças apareceram e retiraram Valentim do local. Vendo de longe a confusão, Júnior o seguiu encontrando-o do lado de fora da boate, com a garrafa de vodca na mão.
- O que foi aquilo? Cadê a Valkíria? Por que você está chorando e no chão?
- Eu a perdi. Eu a perdi – Valentim não aguentou e procurou o peito de Júnior aos prantos.
- Nossa. Pelo visto eu é que perdi muita coisa, Romeu.
E dentro de todo este princípio, eu choro pela perda. Sou devota aos meus personagens e os tenho dentro de meu peito, como pássaros que aprendem a voar e levantam voo. Carrego em mim cada universo, não sabendo se sou ou não sou uma senhora. Acabo percebendo que estou no meio da rua chorando, me culpando por ser vingativa e temer o futuro que não sei ao certo se vem. Posso morrer naquela esquina, e se perder dentro de mim mesma, sufocando as palavras que não saem nesta folha de papel.
Todo este mal sujo, imundo, que apodrece meus dedos enquanto soletro as palavras que queimam dentro do meu peito... Isso é a lei do carma? Para onde foi Valkíria? Para onde foi o amor? Por que eu preciso narrar desta e não de outra forma? Quando foi que precisei ser fiel aos fatos? E a licença poética, onde entra nisso tudo? Ai, meu Deus como meu corpo está cansado, minha cabeça está perturbada, meu coração está cheio.
E pego o frio da noite e o transformo em caligrafia, depois em verso, depois neste parágrafo. Cozinho as palavras dentro do meu caldeirão de bisbilhotices, como sou uma fofoqueira... E se minha máquina parar de escrever? Tenho vigor para ficar aqui até tarde? Não posso trair a realidade com uma ilusória sedução do que é o mais correto?
- Então foi isso tudo que aconteceu? Sabia que você era... Bom, o lugar. Eu sempre venho aqui e são poucos que são héteros, ou como você queira chamar ou rotular – disse Júnior, depois de tudo que Valentim falou sobre o acontecido e a sua vida.
- Foi – respondeu Valentim.
- Está na hora de você parar de beber esta vodca. Não está mais em condição alguma de ficar em pé.
- Eu a perdi.
- Não. Eu nunca erro quando digo que as pessoas vão ficar juntas. Não tenho a sorte de encontrar um amor verdadeiro como o de vocês, mas percebo muito ele. E algo como isso tem que ser dito antes de qualquer coisa, você não acha?
- E quem disse que ela deixou? Isso tudo é maior do que eu posso falar... Não cabe em palavras. Mas eu amo ela. E sei que é cedo para achar isso... Mas eu amo a sua irmã... Eu não tinha condições de contar porque são coisas que não apago da minha memória. Não quero que ela seja uma das muitas passagens e capítulos... Quero ela para ser o meu livro todo...
- Eu sei... Chega de beber e chorar... Vamos fazer uma coisa muito melhor. Por que você não me conta um pouco mais disso tudo, sobre você? Posso compreender o que você sente, sou quase igual a você por dentro. Mas vamos sair daqui, vamos adocicar um pouco mais a vida...
- Eu a perdi...
- Vem que eu te levanto... Sabe-se Deus onde foi aquela menina agora... Como sempre atente o celular que é uma beleza!
Eu estava a uma distância considerada, mas observava os dois caminhando em direção a um carrinho de algodão doce e sentando em um banco vazio, de uma praça vazia. Pareciam para mim, dividir mais semelhanças do que rivalidades. Então segui o meu caminho e fui para a minha casa escrever, enquanto eles? Ficaram lá naquela praça, falando um pouco mais sobre suas vidas por horas, e sobre ela é claro: Valkíria. Então decidi. Não precisava mais fazer parte desta estória, apenas escrevê-la. E foi o que fiz. Me retirei de cena. Seria mais fácil para mim ser a inexistência, me transformando somente nas letras.
- Quando você descobriu que era bissexual?
- Foi cedo ainda, Júnior.
- É duro quando a gente descobre não é mesmo?
- O pior é se aceitar, e não se descobrir... Minha família sempre foi muito tradicionalista, e quando ficaram sabendo mandaram eu morar com minha avó aqui, sem ela saber que eu era assim, é claro, essa aberração como me chamavam...
- Deve ter sido duro para você. Eu tive o apoio de minha mãe. Mas acho que isso você já deve saber?
- Sim. Sua irmã me falou. Ela te ama muito. Isso é admirável nela, como outras coisas a mais. Sabe aquele amor que você idealiza a sua vida inteira? Ela é esse amor para mim. Por isso quis me entregar assim para ela, depois do que passei com aquele desgraçado.
- E pelo visto passou por muita merda...
- Sim... Ele me roubou, me levou para um lado horrível e acabei fazendo coisas detestáveis. Até hoje amargo na minha vida o peso de ter matado a minha avó por um desgosto. Minha vida sempre foi essa sucessão de fracassos instantâneos.
- Foi pesado com ele?
- Eu acabei saindo da casa da minha avó, indo trabalhar com ele nas ruas da vida. Era chamado de Predador Sexual...
- Você era garoto de programa?
- Por um período eu fui... Acompanhante de luxo... Eu precisava pagar a minha faculdade, queria ser alguma coisa na vida, eu queria um futuro com ele... Eu o acompanhei, achando que isso para mim era viver a vida no estilo sexo, drogas e rock’n’roll...
- Drogas no sentido literal?
- É.
- Realmente você passou um bocado de coisas ruins. Acho que dividimos estas misérias que os seres humanos nos dão...
- Fiquei com ele por cinco anos, aí apareceu alguém mais interessante. Uma amiga segundo ele. Mas eu sabia que ela não era de se confiar. Eles roubaram tudo o que eu tinha, me deixaram sem o dinheiro para pagar até o meu aluguel do mês, e sumiram. Depois fiquei sabendo que ela fez o mesmo com ele, era viciada em drogas pesadas e era uma aproveitadora. E matei aquele ser humano desprezível que eu acabei me tornando, o Predador Sexual morreu. Acabei tentando levar a vida mais a sério, mas a culpa que eu carrego é grande sabe, parece que tudo sempre foi porque fui uma aberração. Se eu não fosse assim estaria com minha família, fazendo sei lá o que da minha vida...
- Você realmente é um anjo... Eu estava pensando a mesma coisa hoje, antes de vir para cá. Mas, no meu caso, evitaria algumas das piores brigas entre os meus pais. Evitaria muitas surras que minha irmã teve que suportar. Mas, quer saber de outro lado? Eu seria exatamente o lixo que o meu pai é... Seria exatamente tudo aquilo que eu mais detesto hoje... Não faria diferença alguma para este mundo sujo... Se você fosse uma aberração, coisa que você não é, seria como meu pai... Um porco imundo... E você não é nada disso...
- Realmente... Seria aquilo tudo que a minha família é... Aquilo que eu mais desprezo... Você acha que sua irmã vai me querer assim... Deste jeito?
- Que jeito? O amor não precisa ter sentido e jeito. O amor não precisa ser convencional, vivemos em tempos modernos. E é totalmente equivocada a sua opinião quando acha que as pessoas devem amar de um jeito normal. Você não amou aquela praga loira que não valia nada? Deixe de ter preconceito consigo mesmo! Sinta mais e pense menos...
- Não sei se sua irmã vai entender tudo isso...
- Vai sim... Tenho fotos medonhas dela que posso publicar a qualquer momento, tenho as senhas dos cartões dela, o número do CPF e do RG, e ainda tenho uma mexa do cabelo dela para fazer magia negra, se você quiser... Ela que não queira lhe ouvir para ver... Sei fazer chantagem e manipulação...
- Você me faz rir depois de tudo isso. Você é um ser humano incrível e ainda vai encontrar o seu grande amor...
- Que os anjos digam amém... Quem sabe eu seja meu próprio amor. Está amanhecendo o dia. Acho que está na hora de irmos para casa, pode me dar uma carona? Porque a louca da minha irmã, sabe-se lá para onde foi... Provavelmente vai estar em casa... Sempre volta para casa... Quando terminou com o ex-namorado foi assim... Ele era um lixo, diferente de você.
- Vamos. E obrigado pela conversa e pelo algodão doce. Você realmente não existe.
- Existo. Para as pessoas certas eu faço questão de existir. Para as outras, nem vale a pena mostrar a minha existência. Vamos. Será que não roubaram o seu carro? Espero que a Valkíria não tenha esvaziado os pneus... Um pequeno hábito dela para com o carro de Dona Lúcia.
- Aquela velha merece...
- Quer empurrar ela da escada?
- Adoraria... Só combinar um horário...
Enquanto dirigiam para casa, Valkíria chegava descalça procurando a sua chave ainda meio desnorteada, com os olhos borrados pela maquiagem. Ainda bem que não havia vestígio de seu pai. Depois de jogar seus sapatos em um canto, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de Whisky, dirigindo-se até a sacada para observar o nascer do dia. Percebeu que o carro de Valentim havia entrado no prédio, mas ficou imóvel no chão, observando os primeiros resquícios do sol entre as grades do guarda-corpo, iluminando o seu rosto e suas lágrimas negras de um borrão de desgosto sem um fim.
- Bom, obrigado pela carona. E eu o aconselho a procurá-la amanhã ou quando a poeira abaixar. Hoje as coisas não irão se resolver... Não com ela de cabeça quente.
- Você é um grande amigo. Mesmo se isso não der certo com sua irmã...
- Vai dar certo, sem negativismo!
- Então... Não quero perder a sua amizade. Muito obrigado por tudo hoje... Precisava ouvir certas palavras...
- Você não era o único! Hoje foi medonha a briga na minha casa... Meu pai trouxe uma rameira, ela me destratou, ele fez a mesma coisa, e sobrou para a Valkíria que levou um bofetão de meu pai...
- Realmente ele é um lixo...
- Bom. Já superamos coisas piores... Vou subir... E vê se sobe também... Não fique aqui enchendo a sua cabeça com merda... E eu aviso se ela estiver em casa, não se preocupe.
- Obrigado...
- Não precisa agradecer... Apenas ame a minha irmã e cuide muito bem dela e de si mesmo. Fui.
Valkíria depois de um tempo imóvel, imaginando o que dizer para o irmão, percebeu que a porta da sala se abriu. Escondeu a garrafa atrás do corpo e continuou observando o sol na sacada.
- Valkíria? Você está em casa?... Valkíria? Era só o que me faltava por hoje...
- Estou aqui.
Júnior correu para a sacada e parando assustado observou que Valkíria estava bêbada, desgrenhada e jogada no chão.
- Ainda bem... Mas... O que você está fazendo aqui? Está louca? Me passa essa garrafa para cá...
- Veio com ele? Me deixa em paz vai...
- Me dá isso aqui... Para com isso, você nunca foi uma miserável bêbada, isso está me dando até nojo... Faz favor de levantar daí, ir tomar um banho e dormir... Esquecer um pouco disso tudo que aconteceu hoje.
- Para quem você está mandando mensagem?
- Não lhe interessa. Levanta vai, amanhã quando você acordar nós dois temos que conversar, e muito. Vou te dar um banho frio, e agora!
- Eu amava ele, mas isso não vai mais me afetar. Eu sou uma mulher forte, sou muito mais do que um sexo frágil... E não quero nunca mais pensar em outro homem... São todos dissimulados e mentirosos!... – atirou a garrafa no meio da rua, acertando a calçada da frente do prédio.
- Chega disso por hoje! Você não está mais em condição de nada... – Júnior a segurou pelos braços.
“Ela está aqui comigo, não se preocupe!”.
Valentim recuperou o fôlego e olhou para aquelas palavras na tela de seu celular. Ligou novamente o seu carro e saiu em busca de uma satisfação temporária que há muito tempo não procurava. Lembrou com exatidão o mapa mental da trajetória feita tantas vezes em sua vida.
- Quanto custa?
- R$XXX,XX
Aquela carreira branca era a representação inversa do que sua vida havia se tornado. Eu tentei piamente mudar o comportamento de nosso Valentim. Mas o que fazer quando todo o sentimento que ele tinha era destrutivo contra si mesmo? Eu estava de mãos atadas, e disse que não entraria mais nesta estória, somente mais tarde para trazer o desfecho necessário. Então, o deixei sozinho com suas drogas, em seu próprio apartamento, e parti em direção a feira, já eram quase nove horas da manhã e eu não queria pegar a xepa, gostava de legumes frescos e frutas do dia. Estava cansada de escrever sobre tanta miséria.

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