O Meu Seis de Janeiro



Não sei por onde devo começar. Se pelo começo da história ou pelo motivo ao qual escrevo essas memórias. É tão vago dizer que exista apenas um motivo ou se esse motivo renda uma grande história. Mas motivos nesse momento não me faltam para tentar descrever o que gera esses tantos conflitos de fatos. Bom como seria um bom começo? Isso ainda eu não posso descrever com clareza. Mas tentarei em algumas palavras manifestar o que minha alma já tão castigada pelo mundo aprendeu.
   O primeiro de todos os meus defeitos: não se encaixar. Nunca deixei me levar por coisas que para mim pareciam tão comuns ou tão normais para os demais. Mas do que me adianta explicar algo já feito ou algo já vivido? O que me manifestou essa incrível revolta de memórias é o meu presente. É esse quarto branco em que me encontro por 10 dias após mais um ato cirúrgico no meu intestino. E se ao menos fizessem o prazer de resignar o direito ao meu lar, ao meu estado de tranqüilidade e sanidade mental, poderia com mais clareza analisar os aspectos desses fatos. Não que questione o quanto o meu médico é bom. Nunca questionarei nenhum de seus tratamentos. Mas o que não aceito é essa tal de reabilitação nutricional de dias preso em uma cama de hospital, sendo pressionado a comer. Sim. Comer para mim já foi um dos verbos pior julgados. Posso dizer que comi bem um dia, ou ainda que eu me alimente melhor amanhã. O que queria? Ir para a minha casa.
   Todos os dias as mesmas rotinas, tentar dormir á noite, tomar banho após a visita do médico de manhã, que geralmente me desagrada com as palavras “você vai ter que ficar”, trocar o curativo da minha barriga que ainda tem pontos, que o tempo irá fazer a questão de me lembrar sempre, que vivi tudo isso. O que mais fazer? Assistir TV talvez? Conversar no horário de visitas com os familiares que desejam força, sempre dizendo que estou melhor a cada dia. Talvez começar um relato de minhas memórias, ou falar sobre o cheiro de sonho que lanchei de tarde e não consegui acabar de comer por completo. Agora do meu lado eu vejo um copinho de pudim de chocolate, um copo de chá e um pacotinho com bolachas. O meu acompanhante? É o meu pai. Eu vejo nos olhos dele que ele quer ir embora mais do que eu. Mas ele tenta me dar força de todo jeito. Da forma que ele aprendeu a manifestar o que sente. Não posso questionar o que ele faz por mim. Às vezes eu não identificava isso como amor. Mas, percebo como sempre, que hesitei no que achei ser tão verdadeiro na minha cabeça. Bom, esse é outro de meus tantos defeitos.
   Meu maior medo é ouvir amanhã uma negativa quanto as minhas esperanças de ir embora. Tentarei levantar os meus argumentos que ainda devo ensaiar de madrugada. Mas aqui não me alimentarei direito nunca. Quando tenho fome, não tenho o que comer. Quando não quero me empurram comida. E sem falar nos copinhos com suplementação, que perturbação, aquilo me deixa com ânsia de vômitos.
   Os enfermeiros estão chegando novamente para medir a minha pressão, ver se tenho febre e contar os meus batimentos cardíacos. O que me mais me aflige são quando trazem medicação. Mas tenho que tomar sem fazer cara feia. Ainda que já tenha em mim um cateter na veia no pescoço, para a alimentação e a medicação.
   Se fosse para casa não teria mais que tomar medicação na veia. É isso que me deixa um pouco mais revoltado com o meu atual estado. Na minha casa poderia tomar remédios via oral que me preocupam muito menos, e me fazem menos mal também. Estou ouvindo aqui da cama o meu pai nesse momento ouvindo musica lá fora. Ao menos ele não depende de ninguém para ir onde quer que vá. Eu ainda não desfruto desse luxo que se chama liberdade.
   Minha maior alegria não seria ganhar na mega-sena, mas sim ouvir meu médico dizer que eu vou embora na segunda ou na terça. Amanhã terei que usar os meus dons de advogado, que foram empregados em todos nós humanos, quando lutamos por alguma causa, que é só nossa e de nosso interesse. Lutar com unhas e dentes por aquilo que irá me fazer bem. Aquilo que realmente faz sentido a minha vida.
   O medo que sinto é por tanta expectativa nisso e ver que todos os meus recursos não foram válidos. Que o melhor para mim no momento era ficar mesmo nessa cama de hospital, tomando medicação e sendo forçado a por alimento na minha boca, mesmo quando não tenho fome. Em casa poderei comer melhor. Caminhar quando quiser, sem precisar que venha me desligar o soro dizendo para “não demorar que pode trancar o cateter”.
   Hoje sei que Deus é maior e luta por minha vida. Mas quem deve lutar mais sou eu. Lutar por aquilo que acho que é melhor para mim. Mudarei minha rotina. Começarei assim que chegar em casa. Cortarei produtos industrializados de minha vida, vou comer mais salada e vegetais, frutas e comidas saudáveis. Vou começar a evitar alguns fatos que são minha culpa. Se eu estou aqui hoje com medo de não sair amanhã do hospital, a culpa é minha. Mas acho que já paguei por tudo que fiz nessa vida. Não bastam as dores e o tanto que vomitei antes de operar? Agora tenho medo de comer. Tenho medo dos meus pontos no intestino. Por isso como pouco, mastigo bem o que como, para não complicar nada e eu poder sair daqui mais cedo. Hoje consegui ir ao banheiro pela primeira vez depois que operei. E olhe que tiraram um bom pedaço do meu intestino: foram 90 cm. Já faz quatro dias que operei. Ontem comecei a dieta sólida novamente. Antes tava com a líquida, e posso garantir que gelatina quase em todas as refeições é horrível. Falando em comida me deu fome, vou fuçar aqui nesse pudim e comer um pouco dele.

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