Me Arte!

Não via a hora de sair o resultado do concurso Nacional de Contos Josué Guimarães para poder dividir com vocês meus dois contos!!!! Não ganhei mas valeu a tentativa!


[1.]
Tem dias que quero matar sem consequências. Chego a colocar minhas duas mãos no pescoço da vítima deixando ela desacordada, mas me bate a culpa de saber que é só mais um filho da puta de um ninguém, que vai ser enterrado e creditado como: causa da morte asfixia. E não foi bem para isso que pintei meus cabelos de vermelho, troquei de carro e ampliei minha coleção de armas. Nem por isso que dei três tiros em um cara começando a minha própria obra de arte revolução. A minha arte sedução cotidiana, trazendo de baixo para cima, plagiando a minha própria essência macabra.
 É da genética! Meu pai matou minha mãe friamente com várias facadas, quando eu tinha apenas cinco anos e assistia televisão na sala. Dez anos depois estava cometendo a mesma cena, sendo o protagonista principal da vez. Ele ficou lá estendido sobre a pia da cozinha enquanto eu pegava as suas armas na garagem e saía maravilhado com a minha concepção artística! Comprei a polícia, comprei o governo, comprei as testemunhas e mudei de cidade, de nome e de hábitos.
- RiCke MaveRiC?
- Sim. Sou eu – respondi.
- Seu quarto já está pronto! O senhor deseja algo?
- Me leve a melhor das suas vodcas e um punhado desses pacotes de doces que vocês empurram para os hóspedes... E vê se não demora, não trabalho bem com a espera, me causa ansiedade e certa aflição nos dedos, se é que me compreende...
- Sim senhor, assim que subir estará a sua espera!
- Muito obrigado! Será recompensado, seu filha da puta!
Subi as escadas (nunca entrava em elevador) pensando no dia que atribui esse xingamento a gente de bem. Havia recém chegado na cidade, com algumas mortes pesando nas costas, e fui convidado para ir em uma reunião na “Mad House”, uma casa que ficava afastada da cidade em algumas horas, servindo de palacete para festas e encontros da elite. Aprendi a conviver com a dor depois daquilo, e acabei me tornando o homem que sou, cometendo alguns crimes aqui e ali, com meus processos arquivados na justiça. Estava limpando a Terra da ignorância!
Hoje? Sou um belo de um patife! Um homem arruinado por suas próprias vontades de criação. Eu preciso criar um ambiente perfeito, escolher uma vítima, agraciá-la com minhas palavras e meter um tiro no seu peito, sentindo a respiração se desprender daquele monte de merda que é o corpo. É dali, daquele exato momento, que observo as cores e as formas como uma pintura em um museu. E aqueles olhos parados e negros de morte? Toda aquela pele fria e perfeitamente desconexa, sem vasos sanguíneos irrigando o corpo dos pés a cabeça? Já parei para pensar que concebo defuntos, mas as palavras e pinturas também não estão mortas? Eu sou um artista!
Entre todo este meio tempo em que chegava a minha porta pensando, observei que um homem cuidava meus passos. Então parei em uma janela e o esperei. Sabia que ele não tinha coragem de me pegar de surpresa por minhas reações exacerbadas. Se aproximou enquanto eu fumava o meu cigarro próximo da entrada do hall do quarto. Me chamou pelo nome, o nome mais temido da cidade, por assim dizer:
- RiCke MaveRiC?
- Sim, sou eu.
- Preciso que você faça um serviço para mim.
- E?
- Estaria interessado?
- Não sei, seu filho da puta. Talvez. O que ganho com isso?
- Dinheiro. Você não mata por dinheiro?
- Não filho da... – Por saber da minha existência não deveria ser pouca bosta, então me calei e continuei a conversa – Eu mato por diversão. O dinheiro é apenas consequência. Quem é o infeliz da vez?
- Essa mulher, desta foto. Ela me deixou há alguns dias e...
- Felícia Muniz? Não... Procure outro homem para isso... Esta mulher tem visibilidade, causas sociais que defende e uma bela carreira como filantropa.
- É uma desgraçada isso sim.... Tenho seus contatos pelo senador Branquio Heteroalves.
- Aquele velho lobo ainda está na política? Mande lembranças para ele... Deduzo que Felícia esteja no hotel?
- Sim um andar acima do seu.
- Nunca fiz isso, mas abrirei uma exceção. Suba comigo hoje a noite perto da hora mais escura e silenciosa do hotel. Vou te mostrar como é que faço arte. Só não fique seduzido pela morte, porque nem sempre ela é agradável!
- Se pudesse só esperar...
- Não, nada feito. Você é que vai puxar o gatilho! É como pegar em pincéis, tocar teclas de um piano... Depois da prática você nunca mais se esquece... É um marco na vida de qualquer homem, vai por mim...

[2.]
Aquele momento em que apenas queria estar bebendo o meu Johnnie Walker com gelo, ouvindo Depeche Mode, tirando meus sapatos altos e me jogando na cama. Mas, quando entrei no meu quarto percebi uma penumbra na sacada, parada esperando a porta ser aberta. Estarrecida tentei me mover e acender a luz, mas ele vinha como uma sombra flutuando sem pés sobre o chão, me deixando cada vez mais branca e sem ar. Até que em um rompante de segundo abriu a boca e me disse:
- Felícia Muniz... Que prazer em conhecê-la. Estava a sua espera para uma longa e divertida conversa. Disposta a ser inspiração para a minha arte?
- Uhm, RiCke presumo. Conheço sua arte e não estou disposta a participar dela, muito obrigada – respondi tentando esconder meu medo – E o que te traz até o meu quarto, que eu possa ajudá-lo?
- Conhece meus feitos? Que honra para alguém como eu... Também conheço os seus. E como não gosto de incertezas, seu marido mandou lhe matar...
- Meu marido? Aquele filha da puta? Não era de se estranhar. Não consegue compreender que não vivemos no século passado e que eu não preciso ficar trancada em casa satisfazendo suas vontades, e onde ficam as minhas vontades e ideais? E você tem razão para chamar isso de arte... Morrer é plenitude e concepção.
- Então você acha que eu tenho razão?
- Em partes sim. Mas você fala alto tantas vezes, que deixa espaço para incertezas. Sabe... Todo mundo tem algum porém que mantém escondido na escuridão da alma... Você não deve ser diferente, ou deve?
- Não devo e nem sou. O que é o diferente para você? – ele arregalou os olhos perguntando.
- Não sei... O que não é igual a mim, talvez.
- Então você acha que diferente é não ser igual a você? E o que você tem de especial para ser considerada um ponto de comparação para alguma coisa?
- Eu sou...
- Diferente?
Não tinha como não olhar para aqueles olhos pretos e redondos que me encaravam com sinergia e uma força hipnótica. Os lábios avermelhados e molhados salivavam a cada palavra travada. Aquela criatura era o significado da persuasão. Precisava sair viva da maneira dissimulada que ele falava. Não é que ele era bom naquilo que sabia fazer?
- Não – respondi – Do que vale a minha opinião para alguém como você que sabe de tudo?
- Saber de tudo? Se soubesse de tudo não estaria aqui tentando lhe seduzir para enaltecer com a arte todas as partes do seu corpo. Apenas sei sobre o que eu quero saber...
- E o que você quer saber?
- Não sei. O que você presuma que eu queira saber?
- É assim que você faz, quando não tem respostas coloca perguntas prontas?
- Talvez. Mas isso ainda não muda a sua situação.
- Que situação? – eu gritei.
- Não se exalte querida. Não gosto de presas nervosas, deixam rígidos os músculos, e o que não quero hoje é carne dura para transpassar balas!
- Você é louco! – comecei a chorar.
- Não fique assim Felícia, você é maravilhosa, tem uma aura incrível...
- Espero que um dia possa sentir o que eu sinto, seu inseto miserável, sua cobra traiçoeira, raça imunda que habita a face da Terra! Por que tudo isso agora?
- Eu é que te pergunto: por que você tem medo?
Por que eu estava com medo? Talvez seria porque ele estava no escuro, encoberto pelas sombras, perto de mim com seu olhar fixo, baforando um hálito frio de morte. E não queria saber o que ela seria tão cedo, beirando meus trinta anos, lutando por existir dentro da minha verdade.
- Como você entrou aqui? – eu perguntei.
- Como não entrar? Hoje em dia é tudo tão fácil...
- Posso ao menos saber o seu nome verdadeiro?
- Assassinato, demônio, anticristo, maldade, violência, inveja, soberba... Escolha um e se divirta!
- Vampiro! – sussurrei esta palavra – O que eu fiz de errado para merecer isso?
- Por que você precisa ter feito algo de errado para merecer a morte?
- Eu vivi como qualquer outra pessoa. Eu tentei de todas as formas pensadas e não pensadas viver no amor. Viver na plenitude daquilo que eu acreditava ser o correto... Eu acho que está tudo errado. Quem ama é quem paga por aquilo que quem não presta não leva a culpa... Quer saber? Me mate! Me leve deste mundo, mas se puder pedir alguma coisa...
- Sem pedidos... Não sou um gênio da lâmpada para conceder desejos!
- Pois bem... Só não faça que isso doa. Minha vida foi dor atrás de dor, sofrimento atrás de sofrimento. Consegui estar onde estou com esforço e lágrimas no rosto...
- Todos possuem uma história de vida, não use a sua como desculpa. Você foi premiada!
- Não tem como pegar mais leve com o seu senso ridículo de humor? – acabei me exaltando e gritando as últimas palavras.
- Não. Quando posso te matar? O mundo não gira ao seu redor minha amiga... Tenho outras coisas ainda para fazer hoje.
- Eu sei que não gira... Gira em torno do sol. Mas até isso pode ser questionável, não pode?
- Talvez. Aonde quer chegar?
- Quero chegar aonde eu cheguei. E se não passar daqui estarei completa, porque cansei de ter medo de pessoas como você. Você não é nada! Você é um idiota que se acha pelo pouco que tem, com suas esquisitices e suas manias artísticas e esquizofrênicas da cabeça, seu filho da puta.... Eu luto por mim e por todas que são caladas todos os dias por pessoas como o meu maravilhoso ex-marido, que não aprende que não preciso das coisas dele, das palavras dele, da existência dele. Eu sou uma mulher resolvida, eu bebo meus pileques, eu me expresso, uso salto e assumo meus riscos e minhas ideias até o fim. Se para você matar é arte, para mim existir é vida! E quando você tirar ela de mim saiba que vai contra a sua própria concepção. Eu não preciso ser concebida, eu sou pela existência o que sou. E quando trazerem a superfície tudo aquilo que eu sou, tudo aquilo que eu prego, tudo aquilo que eu sinto e amo, pode ter certeza que não vai ser uma moda passageira. O amor está entre nós desde os primórdios. E não é um simples amar, não é o que faço de melhor, mas viver é o que me deixa feliz. Eu não consigo me imaginar não dando voz para aqueles que não podem abrir a boca pelo medo. Talvez para você isso não faça sentido. Eu respeito você e suas dores, a sua maneira de viver e ver o mundo... Tirando a vida por todos os lugares. Me mate! Me mate! Me ame! Faça o que quiser! Eu não quero mais ver o pôr do sol, nem as estrelas do céu, nem as flores, nem as cores, nem os sorrisos... Não compensa tudo isso me sentindo sozinha no universo. Tudo isso que eu falo é morto. Mas minha arte, essa nunca, nunca morrerá!
Ele ergueu sua mão contra a escuridão do que eu acaba de me tornar. Fechei os meus olhos e pude ouvir o gatilho ser disparado. Era como uma metralhadora de palavras que me atingiam o peito em cheio.
- Faça o que quiser com o corpo. O que eu tinha para fazer aqui, já está feito.
- Como?
- Você matou a si mesma com suas palavras. E eu matei o seu ex-marido com uma arma de segunda mão. Vai por mim, ainda nos encontraremos por aí Felícia, você não está sozinha. Dores por dores você foi a minha melhor obra.
Quando abri meus olhos ele não estava mais lá. Então liguei para a polícia, confirmando a morte de alguém que não a minha. Ele não era um animal, era um artista concebendo a minha própria expiação de pecados e ressurreição.
- O que você fez comigo MaveRiC? Eu existo!

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