COMPRO (SUB) MISSO


“As Mulheres São: começando um movimento”. Coloquei o livro sobre a mesinha de centro da sala, onde estava o jornal que estampava: “O caso da freira que virou vidente” e “Trans Suicida: tentativas de suicídio aumentam a cada ano”. Era de um sensacionalismo barato! Roberta, minha filha, cruzou a porta de cabeça baixa, e foi para o quarto. Ela sabia do seu compromisso e me atazanava querendo ser uma garota idiota e desagradável.
- Vai se trocar, já está quase no horário!
Eu sei o que faço da minha vida. Não vou para compromisso algum. Ela não entende a gravidade do fato. É como se as coisas nunca tivessem acontecido e eu fosse submissa a uma mulher suja e medíocre, uma velha traidora do inferno. Era isso que ela era, não minha mãe. Enquanto tinha um quarto, uma chave na porta, um rádio ligado, tudo estava bem. A música abafava o meu choro. Meu quarto era a segurança que ela nunca me deu.
- Roberta, não vou repetir! Abra esta porta e desligue esta música maldita! Minha cabeça está doendo e não aguento tanto barulho e mal criação! Vamos! Abra esta porta agora, você tem compromisso! Eu quebro sua porta e depois sua cara, não duvide de mim...
- Você ainda acha que eu duvido? – falei baixo fechando meus olhos e fingindo estar morta. Nesta posição me sentia mais confortável e amada. As pessoas não amavam mais aos mortos? Queria ter sido eu, a trans suicida da capa do jornal do domingo, com uma manchete maior e mais elaborada, levando comigo um punhado de gente.
Nada estava bem. Estava perdendo o controle daquela menina, ela era um tigre ferido pela minha ausência materna. Nada estava bem! Eu estava desequilibrada, vivia pelos cantos em prantos, porque era uma mulher com arrependimento tardio. Roberta estava com uma mania de me ignorar e isso acabava me tirando do sério, como naquela vez em que eu tinha bebido algumas garrafas de vinho, e arremessei uma vazia sobre a cabeça dela. Havia sido questionada sobre eu ser ou não ser uma mãe. Não aprendi a ser uma.
- Ainda bem que você atendeu desta vez – eu disse no telefone.
- O que aconteceu? – ele respondeu me interrogando com um tom fatídico.
- Roberta deu de me ignorar, não está nem aí com os seus compromissos e ainda faz gosto de ser desprezível e desagradável...
- Isso ela puxou de você. Não posso fazer nada agora que sei que não sou o pai. Procure quem lhe deu este belo presente. A filha nem é minha, não ligue mais para cá!
Ele não poderia ter apreço por uma coisa que não era sua. Não era um homem como aqueles que se denominam “pai de criação”, já tinha os seus filhos verdadeiros com uma mulher que não o merecia, mas de verdade.
Deveria ser coisa de minha mãe, colocando ideias e mais ideias sobre mim na cabeça de Roberta. Não perdi tempo e liguei para ela, minha cabeça estava explodindo. Era pedir muito apenas alguns minutos de silêncio?
- O que senhora andou falando para a Roberta?
- Alô. Quem é que está falando?
- Sou eu mãe, está me ouvindo?
- A ligação está muito baixa...
- Vá para a merda – desliguei o telefone lembrando que aquela velha era surda. Fui para fora, reto até a caixa de luz, e desliguei a chave geral conseguindo o meu silêncio. “Não brinque comigo Roberta, não brinque comigo”. pensei.
- O que você acha que está fazendo? Acha que não sei que foi você que desligou a chave novamente? – sai do quarto aos gritos – Não posso fazer mais o que quero nesta casa? Você acha legal isso tudo? Eu não lhe entendo...
- Sente aqui e me escute! Eu sou sua mãe... Feche a boca e me escute – não deixei me responder e concluí a frase – e exijo respeito, ouviu menina? Quem você pensa que é para fazer o que quer? Enquanto eu colocar comida aqui, pagar suas contas e lhe dar abrigo, será do meu jeito. E no meu jeito não existe uma menina mal criada, sem educação, que finge estar surda quando estou falando – chacoalhei seus ombros, porque estava com raiva – nesta casa terá o silêncio, nesta casa que é minha, não haverá coisa a mais do que o silêncio. Estamos entendidas? Se quisermos morar juntas ainda, temos que ter o mínimo de respeito uma com a outra. Respeite o silêncio e o meu canto, que serei uma mãe bem generosa, sem me importar com sua vida e suas coisas. Agora vá se arrumar, você tem um compromisso...
Era estranho ver Roberta calada e dona de si.
Estava na hora de criar massa escura em casa, e acelerar as partículas criando um buraco negro. Estava farta de ouvir a mesma conversa fiada de sempre, de que as coisas são assim e não mudam. Estava farta de ser um exagero e me desfigurar para caber dentro de outras pessoas. Cansada de tirar os meus melhores pedaços para dar aos outros a melhor versão possível daquilo que eu poderia representar sem questionamentos, cansada de ter que ouvir que tenho meus compromissos morais, sociais e religiosos. Iria abortar meu filho, e não teria mais volta. Não queria ser uma mãe como a minha.
O que é este mundo? Quem sabe um mar de pessoas doentes como eu.
- Cala a boca sua vagabunda! – dei minhas costas e me tranquei na cozinha.
- Como é que é Roberta? Roberta.... Abra essa porta! O que você acha que está fazendo? Reagindo feito uma louca, fugindo como um animal? – Apesar dos gritos e dos socos, sentia a angústia de ter errado em tudo que me propus fazer. Aquela menina tinha se tornado estúpida e irracional, oposta as coisas que tentava a ensinar, mesmo não querendo ser uma mãe. Com ela trancada na cozinha só esperava que o pior não acontecesse. Ela vinha de um quadro de depressão severa, e não me responsabilizaria por mais um erro grave na minha vida. O primeiro foi a ter colocado no mundo.
- Filha... Roberta. Abra esta porta!
- Vai se ferrar sua velha vagabunda! Eu te odeio, me deixa em paz!
- Por favor, abra esta porta, não me obrigue a chamar alguém para abrir. Que cheiro é esse? É gás? Roberta, por favor.... Abra esta porta...
Eu abri todas as bocas do fogão, tomei fôlego, e antes de enfiar a minha cabeça dentro do forno, gritei com todo o ar dos pulmões:
- Não foi isso que você sempre sonhou, mamãe querida? Velha vagabunda...
Quando dei por mim estava ligando para a polícia e para os bombeiros. Entrei em desespero pela primeira vez na vida. Era um desespero tardio de uma mãe tardia. Uma mulher que não se atentava ao fato do dinâmico, apenas do estático. Corri para a garagem e busquei o machado, o único indício de que um homem já havia entrado dentro de minha casa. Machados foram feitos para os homens, mas as minhas mãos precisavam o usar. Era tempo de desconstrução. Tentava despedaçar a porta temendo que fosse tarde. Sentia um desconforto no peito. Era como uma prisão cheia de grades.
- Roberta, o que foi que você fez? Por que minha filha? - Rompi a barreira que nos separava, e ela estava imóvel no chão. Permaneci de pé com os meus olhos pesados e cheios de dúvidas molhadas. Meus músculos endureciam.
Talvez se eu caísse junto dela, com o peso dos meus fracassos, pudesse me sentir completa. Mas, corri fechar o gás e acabei levando-a para o jardim. Com isto veio a vergonha e com a vergonha, a descoberta da minha própria consciência. E reparei que estava pensando e repensando todas as minhas ideias e falhas. Sim, era culpa. A culpa macetou minha cara como um tapa. Ardendo em febre andava de um lado para o outro, tentando descrever o que não poderia mais ser descrito. Eu era uma mãe relapsa e desonesta. E só então me deparei com a verdade. Era uma velha vagabunda. Uma velha egoísta. Uma mulher que não cumpria com seus compromissos sociais e existenciais.
- Eu mereço um fim... O que foi que eu fiz?
A culpa era o meu limite. E para passar longe do meu limite precisava da dor de uma redenção, a redenção de uma mulher e não de Cristo. As mulheres eram feitas para parir com o espírito santo e serem apedrejadas até a morte. Não seriam perdoados os seus beijos de traição e nem se consideraria as suas palavras e seus evangelhos. Mas, estava redimida de mim mesma e da minha própria ausência. Estive ausente no mundo até que derrubei uma barreira e me desconstruí. Na gaveta da cozinha teria uma porção infinita de saídas e despedidas.
Dentre as possíveis e permitidas escolhas, fiquei com a de cabo branco, 30 centímetros, que usava para cortar carne. Deveria cortar a mim mesma, estava em pedaços de mim. Não tinha mais a agulha e a linha para unir todas as partes. Ela estava lá fora. Eu estava na ausência.
- Em que parte eu devo me ausentar?
No pescoço, foi a decisão.
Seria um único golpe, tão certeiro e tão intenso, que não conseguiria pensar em mais nada para acabar esta narrativa. Ergui a mão por duas vezes. Na terceira então, enquanto pensava, a mão subiu e eu...
- Mãe?
Andei até a porta da frente. Estava trancada. Voltei até a janela da cozinha e lá estava ela. Um cadáver de uma velha vagabunda, ensanguentado no chão. Aquela mancha seria permanente? Havia acabado a água sanitária, e só tinha sabão neutro de cocô. Quebrei a janela da frente e consegui entrar pela porta.
Talvez eu que fosse fria. Depois de acordar comecei a reparar nestas coisas. Cobri a cabeça de minha mãe com uma sacola de pão, e a arrastei para perto da cerca do vizinho.
- Como você pesa!
Foram quarenta minutos até conseguir abrir uma cova funda o suficiente, e cobrir todo o corpo com terra. Iria plantar flores, e talvez até a primavera do ano que vem todas estivessem floridas. Tomei um bom banho, limpei o sangue do chão, liguei a televisão e destruí  todos os telefones, queimei os porta-retratos. Só depois de algumas horas ouvi as sirenes. Tomando chá de canela pressenti minha submissão.
- Recebemos um chamado e viemos averiguar se estava tudo certo... Sentiram cheiro de gás, ouviram barulhos e gritos... – disse-me um policial, acompanhado de um outro homem mais magro de olhos escuros.
- Tudo certo. Minha mãe está enterrada ali nos fundos – apontei – Aceitam chá?
Eu era agora uma mulher livre.

(Livro Ânus Floridos, Vinicius Osterer)

Comentários

Postagens mais visitadas